O gaúcho da pampa é como o árabe do deserto, é o beduíno da América, seu terno, seus costumes, sua vida é uma cópia bruta e sem poesia da Arábia de Saladino; seu chiripá é o bornuz, seu cavalo sua única propriedade, a faca é seu amigo , e sua casa a sombra do ombu cuja folhagem o refresca na travessia qual o árabe repousa ao pé da palmeira.
O gaúcho nasce no chão, abre os olhos surpreendidos numa chigua, cresce rebolando nas cinzas e brincando com a catana que muitas vezes é a única mobília da casa. Sua primeira viagem ao campo é com o laço, e seu próximo ensaio consiste em bolear uma avestruz ou ajudar seu pai a descolar um toruno. Aos 15 anos já o gaúcho é um homem completo, porque está instruído em todas as molas da sua vida selvagem e não aprenderá outros; a sua liberdade absoluta indica-lhe desde então a extensão do seu senhorio; num rei na solidão, os pampas são s ou domínio, seus Vassalos é tudo o que está ao alcance de seu laço. O único rival que a natureza lhe criou é o índio pampa, animal feroz que mata ou morre nas suas correrias, mas o gaúcho pamper o subjugou finalmente. O gaúcho é hoje onipotente.
O gaúcho, já dissemos, é o soberano do pampa. Não possui nada, mas é dono absoluto do mundo em que vive. Se o seu cavalo se cansar na travessia, o seu laço lhe dá outro; se tiver fome, as suas bolas fornecem o seu estômago com a carne que escolher no gado solto, quer da avestruz e do leão, ou já das aves aquáticas que o visitam no inverno, ou da perdiz que fascina com uma volta de seu cavalo e mata com seu rebenque. A carne é sempre o seu único alimento. O gaúcho pampeano não viu talvez em toda a sua vida os ranchos de São Luís no meio da pampa; mas ele o que importa? : esse é outro reino, lá há subdelegados, armadilhas e polícia; ele é livre, é soberano, é mais ainda, é onipotente porque despreza todo poder...
O único adversário que ousou até aqui invadir os seus domínios é o índio do Sul, que é o gaúcho da pampa, que o tigre ao leão, e de fato, o gaúcho e o índio se odiam e se esquartejam como o leão e o tigre. O índio pampa é uma besta feroz; anda nu sobre o lombo do cavalo com a lança por unico corte e cabelo preto e áspero como uma crina presa sobre a testa esmagada com uma tira de trapo imundo ou bayeta colorada por unico atavio. Seu único traço humano, que o aproxima do instinto do bruto, é um valor indomável, porque o índio pampa só sabe duas coisas: matar e morrer. Ele nunca perdoa nem gosta de ser perdoado.
... Como o vento que se levanta nas planícies onde habitam, suas hordas ferozes varrem os países que percorrem deixando apenas mortes e desolação. Mas finalmente o gaúcho colocou uma cerca passageira nas suas incursões; para o gaúcho o índio não é senão um animal como uma raposa ou um javali, e quando o pega, maneja-o, corta-o, carne-o e joga as presas aos seus cães... A pampa inteira tem sido um imenso campo de batalha entre o gaúcho e o índio e entre os gaúchos entre si; não há posta em que não se tenha dado um assalto, não há trilha que não tenha conduzido mil vezes as hostes de um malão, não há gaúcho que não lutou de homem para homem...
É a pampa uma nação de guerreiros e se fosse povoada sairiam de lá os conquistadores do mundo como aquelas falanges tártaras de Tamerlan que faziam pirâmides de milhares de cabeças depois dos seus combates... Eu não vi nenhum gaúcho em toda a pampa que não tivesse nenhuma cicatriz no rosto ou nas mãos. Nossos dois capatazes também estavam machucados e nos contavam que tinham lutado com faca muitas vezes...
BENJAMIN VICUNHA MACKENNA
