Detalhes do Site

O Cotidiano dos Bandeirantes descrito e narrado por um Bandeirante em 1754



    Talvez o documento que vamos expor aqui sequer tenha chegado ao conhecimento da maioria das pessoas, uma vez que também é raro que fontes primárias tenham sido narradas e descritas pelas próprias experiências dos bandeirantes e de quem os acompanhavam.
    A maior parte dos documentos e informações que nos passam sempre é do ponto de vista de quem era o inimigo do bandeirante.
    Mas esse é o ponto de vista de um bandeirante, um homem convivendo no meio dos paulistas antigos.
    Trata-se de Angelo de Sequeira (1707-1776), paulista, que foi bandeirante, missioneiro católico e mestre-de-capela.
    No seu prologo, ele destaca que os paulistas enalteciam o fato de serem paulistas, e se identificavam com os Bandeirantes, e que também tinham sentimento nativista em relação a sua terra. E demonstra também que "o mito bandeirante" que supostamente foi criado pela elite cafeeira paulista, cai por terra quando nos deparamos com fontes primárias como estas, de pessoas que estavam vivendo pessoalmente e relatando o orgulho que sentia em relação ao movimento, antes mesmo de que séculos depois pudesse ser produto de tal "romantização".
    O texto é um pouco longo, mas vale lê-lo por completo.
    O Prologo de Angelo de Sequeira, 1754:
    "Algum astro desconhecido ainda das observações astrológicas domina sem duvida no horizonte da cidade de São Paulo, o qual com influxos mui ativos inclina os ânimos dos Paulistas, seus habitantes, não só a serem nobres, mas altivos, não só valorosos, mas temerários, não só laboriosos, mas exploradores, não só obedientes, mas hoje também obedientissimos, não só desprezadores de cabedais, mas também ambiciosos de honras. Esta união de circunstâncias, que neles concorrem, os movem desde o princípio da sua povoação a deixarem o cômodo das suas casas, a companhia de suas mulheres, o amparo de seus filhos, e a comunicação dos parentes para explorarem, e reconhecerem os países circunvizinhos à custa das suas próprias vidas, e fazendas.
    A este fim entrarão pelos intricados dos bosques, de que estavam provados aqueles vastíssimos sertões, e abatendo altas, e grossas árvores, abrindo caminhos, atravessaram caudalosos rios, combateram com os bárbaros habitantes das suas margens, devastaram os animais ferozes, que os acometiam nos matos, e destruíram bichos formidáveis, e venenosos, com as mesmas armas, que levavam para a sua defesa, conquistaram, caçando, o seu próprio sustento, e alimento.
    Entranhados em países estéreis da sua pátria, acabando o provimento da pólvora, e chumbo, com que saíam com ela munidos, levando nas bocas das armas o remédio para as suas, achando-se sem os meios prefícios para a caça, os constrangia a fome a nutrir-se, comendo raízes de árvores, e de plantas desconhecidas, cuja venenosa qualidade os condenavam a uma arrebatada morte.
    Outras vezes morriam os paulistas(bandeirantes), despedaçados nas unhas, e garras dos Tigres e das Onças, e a muitos paulistas engoliram as cobras, especialmente as chamadas Jiboias, e Sucuris, ou cobras de Boi, que de ordinário são de vinte palmos de comprimento, e algumas de muito mais, as quais se fingem de forte, que parecem árvores, ou pães secos, e quando querem matar a qualquer homem, ou animal do mato, ou do campo, passando perto delas, assentam, ou plantam as suas caudas como raízes na terra, e ficam como imóveis, e passando qualquer homem, ou animal por perto, se lhes lançam, e enroscando-se nele velozmente, e vão apertando, e trincando-lhe os ossos como uma tal força constritiva, como qualquer cobra enroscada em um coelho, lhe fazem tão brandos os ossos, como cera, e o levam a margem do rio, ou lagoa, e pouco a pouco lambendo, e chupando o metem no ventre.
    E se acaso algum homem ferido cai em certas lagoas, ou rios, em um abrir e fechar de olhos ficou consumido, sem aparecer mais vestígios, do que o rio tinto em sangue, porque uns peixes que na língua brasílica lhe chamam "piranhas", que no idioma português se chama "peixe-tesoura", são tais dentadas no corpo, que com os ossos, e carne despedaçam tudo por terem dentes como navalhas.
    Outros acabam a vida, quando por mitigarem a sede lhes é preciso por falta de águas cavarem a terra, ou descobrirem charcos imundos, e lodo venenoso, e lagoas inficionadas de bichos peçonhentos, e imundícias onde com o veneno bebem a morte, pondo um pano sobre o lodo para mitigarem a sede com a umidade da terra, e árvores amargosas; e quando alguma destas cobras engolem a algum homem, ou animal, como o boi, cervo, ou veado, só não podem engolir as armações, e lhes ficam estas pela boca, servindo-lhe também de morte o que lhes parecia lhes conservava a vida, e na margem do mesmo rio, ou lagoa ficam mortas as ditas cobras, e se lhe converte o corpo em bicharia, da qual renasce, como fênix, outra cobra semelhante.
    Outros assaltados de improviso por uma multidão de bárbaros(indígenas), eram vítimas sacrificadas a sua fereza, e crueldade.
    Estes acompanhando com os seus altos, e dissonantes clamores o horroroso das suas buzinas, e caixas de guerra, e trombetas toscas, que podem causar susto ao valor mais intrépido, cegando ao mesmo tempo com a poeira, que levantavam, batendo o árido chão com os pés, e com a lanças, disparavam contra eles chuveiros de flechas, e de outras armas curtas de arremesso, chamadas "bilros", e reduzem ranchos inteiros a tão lamentável estado, que nem um só escapava para referir no seu país esta fatalidade, e só se resistavam pelos campos, e quando vinham outras tropas, as ossadas dos corpos, que como despojos da vitória dos inimigos se patentavam, e fronteando aos olhos dos Paulistas(bandeirantes), choravam estes a infelicidade de seus pais, e filhos, e vendo outros laçados, outros despedaçados, e finalmente outros já sem cabeça, porque os que escapavam de serem quebradas, lhes tiravam para dos mesmos cascos(crânio) a fazerem copos para beberem água, e a suas costumadas bebidas, tendo por troféu da vitória beberem por cascos das cabeças dos paulistas.
    Outros formavam os teus acampamentos nos lugares em que pernoitavam, fabricando, quando podiam, cabanas para passarem a noite, ou alguns meses, em que quanto se preparavam de mantimentos, ou plantavam, e colhiam para poderem continuar a jornada, e com algum abrigo, e acauteladamente pondo guardas no arraial, que vigiassem por quartos para se segurarem dos assaltos das onças, e dos gentios, mas estes havendo assinalado de dia o sítio, em que acampavam, faziam por elevação tiros sobres as cabeças, e por meio do fogo, que sabem pôr nas pontas das frechas, excitavam nelas um incêndio, que devorava com as suas chamas os que o trabalho do dia tinha sepultado no sono mais profundo.
    Quantos não podendo já aguentar o trabalho das marchas, fomes, sedes, fadigas, trabalhos, doenças, e vencidos da sua própria debilidade, considerando por infeliz a uma vida tão laboriosa se metiam pelos matos mais espessos, buscando a morte por alivio, e a ida por trabalho, e ali uns moribundos, e outros mortos lhe davam sepultura as feras nas suas entranhas, e não haverá narrativa, por mais expressada que seja, que possa explicar bem muitas lágrimas o que tem padecido os Paulistas(bandeirantes) nestes descobrimentos, que parece que a mesma terra, quando em montões se despenha, com a violência dos terremotos, e tempestades, principalmente quando tirarem ouro, abrem, e rasgam os pés dos montes para se entranharem pelo meio da terra, e esta em pedaços sepulta aos homens para não serem mais vistos, nem conhecidos no mundo.
    Mas a grande constância de outros, desprezando as inclemências do tempo, desatendendo ao trabalho das marchas, vencendo os descômodos da vida, e perdendo o terror aos assaltos, continuaram a cortar bosques, e abrir caminhos, a penetrar sertões, a combater com o gentio bárbaro, fazendo a muitos, e algumas mulheres prisioneiros, conseguiram descobrir sítios fecundíssimos em Minas de Ouro no Ribeirão do Carmo, Vila Rica(Ouro Preto), Rio das Velhas, e todas minas gerais, serro frio, Rio das Mortes, Goiazes, Cuiabá, Mato Grosso, e outras de finíssimos diamantes, e de esmeraldas, e já hoje pelo Brasil com minas de prata desfruta a Real Coroa destes reinos; e com que se tem enriquecido uma inumerável multidão de portugueses, que concorreram a aproveitar-se das produções deste inexplicável trabalho dos Paulistas; uns estabelecendo-se no mesmo país, que sendo de antes inculto, e deserto, se acha hoje cheio de povoações, de que algumas logram já o título de Cidades, e de vilas: outros recolhendo-se a Portugal com as riquezas, que ali adquiriram, fundaram casas, e vivem com a opulência, que nunca souberam conquistar seus avós.
    Estas trabalhosas fadigas dos moradores de São Paulo, continuadas por tantos anos, acrescentaram uma considerável extensão aos domínios da Coroa de Portugal, e um argumento mui avultado ao seu Tesouro, para o qual conduzem anualmente as frotas da America mais quantidade de ouro, do que nunca transportaram as que Salomão mandava de Offir, maior numero de diamantes, do que nenhum tempo tributou Golcondá ao Grão Magor. Mas também produziram as grandes mercês, e honras, com os nossos Augustos Monarcas, atendendo a tão importante serviço, lhes fizeram, não só especiais para a suas pessoas, mas comuas para todas as famílias de São Paulo presentes, e futuras, enobrecendo a sua Vila com o título de Cidade, conferindo aos seus cidadãos o mesmo o mesmo predicamento de infanções, que por mercê antiga logram os do Porto, elevando a sua igreja Matriz a Sé Episcopal, e estabelecendo nela a residência do Governador da Província, ainda que hoje suprimido o governo, mas com esperanças de que Sua Majestade por sua Real grandeza, há de ser servido prover de Governador, e capitão geral. Erigido na Cidade de Mariana, outra Catedral, mandando erigir templos, e paroquias, enriquecendo-as com vasos sagrados de ouro, e prata, e com ornamentos preciosos.
    Finalmente as Minas, que ao princípio tiveram o nome dos povos, que as descobriram(paulistas), vieram depois de comuas a ter o das Minas Gerais. A sua Capitânia, as dos Goiazes, e a do Cuiabá, que hoje se acham divididas em governos particulares, todas devem o seu descobrimento à de São Paulo. Todos esses sertões, que em outro tempo só eram habitados por feras bravas, ou por homens que habitavam da forma em que pouco lhes eram diferentes, se acham hoje povoados de gente Católica, o que não só deve Portugal aos Paulistas o uso do seu domínio, também lhes deve a Igreja a extensão, que hoje hoje tem o divino, e verdadeiro culto.
    Eu, que sou Paulista pelo meu nascimento, e por meus avós, também tenho realizado o influxo de explorador(bandeirante), e se não descobri, como os meus parentes, tesouros de bens temporais, faço agora manifesto ao mundo um de riquezas mais preciosas. Os meus patricios os descobrirão para o uso da vida, eu o manifesto para a utilidade das almas.
    Angelo de Sequeira, bandeirante, (São Paulo, 1707 - Rio de Janeiro, 1776), formado pelo Colégio dos Jesuítas de São Paulo, foi primeiro mestre-de-capela (maestro) da Matriz de São Paulo, e depois se tornou presbítero do hábito de São Pedro (padre secular) no Rio de Janeiro após um difícil processo de genere et vita et moribus que durou 7 anos, porque o acusaram de ter sangue judeu nas veias. Vitorioso no processo, tornou-se missionário apostólico e saiu por esse Brasil afora fundando igrejas e seminários, em Cuiabá, nos Goiazes, em Campos dos Goytacazes (onde fundou o primeiro seminário do Brasil de São José), depois construiu a Igreja de São Pedro dos Clérigos em São Paulo em 1747 (onde é hoje Metrô da Sé) e foi para o Rio de Janeiro, onde num brejo construiu a Igreja dedicada à Nossa Senhora da Lapa, de sua devoção em 1750. Por causa da fé de um paulista, o mais carioca dos bairros recebeu seu nome. Em 1753 vai para Portugal fundar igrejas, como a monumental Igreja da Lapa no Porto. Após publicar vários livros em Portugal, regressa ao Brasil onde falece no Rio de Janeiro com 69 anos. Seus livros são muito importantes, são vários cantos populares devocionais em vernáculo não litúrgicos, para os quais houve música de compositores como Manuel Dias de Oliveira na Comarca do Rio das Mortes na Capitania de Minas Gerais. Outros de seus cantos até hoje fazem parte do folclore religioso em Goiás. Além de músico, missionário foi também jurista. Em Portugal assessorou Marques de Pombal e o Rei José I na nova divisão dos bispados brasileiros, o que influenciou a atual configuração dos Estados. O primeiro pesquisador dele foi Alberto Lamego. Rubens Borba de Moraes foi o primeiro a evidenciar seus valores literários, mesmo tendo confundido ele com seu sobrinho. No livro Botica Preciosa temos uma rara crônica de época, no Prólogo, enaltecendo o destino altivo dos paulistas
    Texto: Felipe de Oliveira
    Contribuição: Rubens Russomano Ricciardi
    Fonte e Livro do autor: BOTICA PRECIOSA, e thesouro precioso da Lapa, : em que como em botica, e thesouro se achaõ todos os remedios para o corpo, para a alma, e para a vida, e huma receita das vocaçoens dos Santos para remedio de todas as enfermidades, e varios remedios, e milagres de N[ossa] Senhora da Lapa, e muitas novenas, devoçoens, e avisos importantes para os pays de familia ensinarem a doutrina Christã, e seus filhos, e criados.
    https://archive.org/details/boticapreciosaet00sequ

Informações

O Cotidiano dos Bandeirantes descrito e narrado por um Bandeirante em 1754
CEP 98801640 - Outros, RS