Detalhes do Site

A MÃO DA FINADA



    Naquela velha estância nas entranhas do Batovi, lá na Formosa.
    Tinha uma lagoa, que todos chamavam de Lagoa Preta ou lagoa do João Negrinho, e nesta zona de banhados e água abundante tem a Lagoa Formosa que deu origem ao nome da Localidade, pois ali por perto teve um acontecimento marcante..
    Nos anos 20, foi morta uma família, num ataque de três facínoras, o tal Bando do Cipriano, que até deu origem ao nome de um Cerro onde ele vivia, cerro cercado por uma zona pantanosa, no qual a polícia e tropas de quaisquer lado, não entrava, primeiro pelo difícil acesso, depois porque Cipriano recebia eles a bala.
    O Cerro do Cipriano era um lugar misterioso..
    Da família morta foram quatro: o chefe da família Seu Gideão, esposa Anastácia, filho Laudelino e a filha moça linda chamada Aurora..
    Dizem que Cipriano, chegou armado e foi logo pedindo ao Gideão a mão da filha Aurora em casamento. Gideão negou dizendo que ela já estava prometida, Cipriano, que não aceitava não. Matou todos. Aurora negou a ir com ele, com uma faca feriu Cipriano no braço, que arrancou a mão da Aurora com um golpe de facão. Depois estuprou a moça e a matou asfixiada com suas mãos..
    Colocou a mão dentro de um bornal de couro e disse para seus capangas:.
    - Eu vim pedir a mão da Aurora, e vou levar a mão dela. – Deu uma gargalhada e partiram a galope com o saque de poucas moedas, na verdade matavam por diversão..
    Pois três anos depois, o tal do Cipriano e seu bando se deram mal e foram mortos por um veterano da guerra do Paraguai, mas isso é outra história que até podemos contar..
    Agora o conto é outro e neste o que vale, é que nos causos do galpão contavam que na estância onde morou Gideão, virou tapera, logo as terras passaram para outro dono e lá perto se fez outra maior..
    Contavam os peões, que nas noites aparecia uma mulher de branco, um fantasma agonizante que procurava a sua mão, entrava nos sonhos dos peões, fazia barulho nas casas, e até se via elas vagando rápido pelos campos sempre nas noites misteriosas da campanha.
    .Já de dia, assim em plena luz, sempre de dia, uns diziam que viam uma mão, procurando pelo seu corpo mas que o encontro dos dois assombros, nunca acontecia, pois um era de dia e outro era de noite..
    Nossa história começa nesta estância com um mulato chamado Bastião, era um homem valente, despachado, vivaz e sempre pronto. Tal característica deu a ele o posto de Sota-Capataz, que vem a ser o segundo homem, depois do Capataz, uma espécie de Sargento, era o olho do capataz..
    Pois quando a peonada se reunia, na volta do fogo de galpão, logo vinha os causos de assombração, e Bastião não gostava, logo partia para o desdém, dizendo que tudo isso era bobagem, até fazia ali diante de todos um desafio, de que realmente existisse alma doutro mundo que viesse até ele, pois ia dar uma surra de relho nos tais fantasmas..
    Todos se olhavam, pois ninguém ousava mexer com coisas do além, e logo vinha um olhar de censura, misturado com admiração pela tamanha coragem que Bastião tinha em afrontar os assombros doutro mundo..
    O tempo passou, foi coisa de dois anos, o Capataz morreu e Bastião assumiu a chefia, também arrumou uma namorada, era a cozinheira da Estância, se chamava Chica..
    Ganhou um quarto separado, afinal agora era o chefão da indiada, um colchão de palha mais grosso, não tinha mais prego para pendurar as roupas, já tinha um armário, também uma bacia de louça e uma jarra de água, um espelho só para ele fazer a barba, um cabide de três paus para pendurar o chapéu e as bombachas e uma cadeira com uma pequena mesa, bidê de cabeceira, mesmo tosco, era uma luxo para Bastião.
    Ele era semianalfabeto, mas acolherava as letras e soletrando ia mais ou menos entendendo..
    Chica que tinha aula de português e matemática com Dona Elvira, dona da estância, ajudava ele nas contas que um capataz tinha que fazer para prestar contas para o patrão sobre os gastos do dia a dia da estância..
    Foi num certo dia cheio de alvoroço, o peãozito João das Cadelas, assim chamado, porque metade dos cachorros da estância sempre acompanhavam ele na lida, era um dom que ele tinha de conquistar os animais, pois sabia o nome de cada um e com eles conversava.
    .Pois João chegou branco, disse que estava na mangueira separando umas novilhas e a mão seca da morta passou por ele como uma aranha atravessando toda a mangueira e depois deu um salto subiu numa árvore e desapareceu, isso em pleno sol da manhã..
    .Bastião ficou uma fera, disse que a tal mão da finada não existia e que se existisse que aparecesse para ele.
    - Seu Bastião, a coitada quer seu corpo, enquanto os dois não se unirem, a alma não vai descansar.
    - Bobagem, já virou tudo pó, se esse fantasma existisse porque não me procurou, isso é invencionice desse povo supersticioso, tu tá bebendo cachaça demais..
    - Não Seu Bastião, eu não bebo nada de dia. Mas que eu vi a mão, isso eu vi.
    - Olha aqui o mão desgraçada, se tu realmente existe, apareça prá mim, que eu te levo até aquele cemitério maldito e te enterro com o que resta daquela desgraçada da Aurora.- Gritou ele bem alto – Apontando para o cerro do Gideão, onde estava sepultado no velho cemitério abandonado toda sua família morta a trinta anos atrás..
    Chica que ouviu tudo, chamou Bastião e disse:
    - Bastião não faça isso, não desafie forças que não conhece, se elas não existem prá ti, então não desperdice tuas energias xingando os que não crê, por outro lado, se existem de fato, porque está desafiando o quê não crê e não vê e essas almas podem te enxergar e até te desgraçar..
    - Até tu minha Chica, meu amor, tem que está do meu lado, e não contra mim. Tenho que acabar com essa bobageira dentro do galpão, eu sou “otoridade”, tenho que me impô. Se der trela para eles, ficam baldosos. Pulso firme, tenho que mostrá que sou macho, valente..
    - Não é desfazendo os mistérios da vida, que vais mostrar tua coragem.
    - Ué, e tem outro jeito de mostra?.
    - Sim meu amor, tu vais descobrir se realmente és corajoso, quando teu medo for testado..
    Bastião ficou sem entender aquela frase, deu de ombros e saiu, tilintando as esporas, com olhar de soberba e todo dono de si..
    A noite se fez longa, trovões se aproximavam, lá no fundo do rincão, escadas de luz instantâneas uniam o céu com a terra, eram raios riscando a escuridão..
    - Vai cair água. - Falou Bastião para a peonada enquanto chuleava seu olhar na porta do galpão para o horizonte.
    Logo veio um ventinho mais forte trazendo para dentro do galpão o cheiro de terra molhada..
    - Bah, amanhã vai ser complicado a lida no campo. – Falou Gardelino, um peão antigo com um bigode branco que tapava a boca, com bordas de fios amarelados do fumo..
    - Vamos deitar pessoal. – falou Bastião. Todos então se recolheram, a armação pesada se aproximava..
    Bastião deitou, logo dormiu. Passou uma duas horas um trovão forte, ele acordou, estava no seu quarto, deitado sem camisa, a luz dos relâmpagos entrava pelas frestas e numa das alumiadas o quarto clareou e de relance no canto do quarto, ele viu uma mulher olhando para ele..
    Ficou ansioso, esperando outro clarão, custou. Então pegou um palito de fósforo e acendeu a vela que estava ao seu lado, a mesinha tosca de madeira. Logo a chama clareou o quarto, para seu alívio não tinha ninguém.
    Como a vela estava um toco, ele com seus dois dedos de pele grossa apertou o pavio e apagou a chama, então voltou a dormir, passou-se então um tempo..
    Outro trovão e ele acordou, veio o clarão, outro trovão e lá estava a mulher de branco no canto do quarto, agora ele viu.
    Veio outro relâmpago e ela foi se aproximando, outro clarão dos céus e ela se achegando e ele tentava se mover e não conseguia, estava paralisado, só podia mexer os olhos. Era um ser medonho, com um olhar de ódio, um ser que parecia vindo do inferno.
    Ela chegou até ele, seus narizes se tocaram e ela disse:.
    - Quero que ache minha mão, tu prometeu!.
    Um grande trovão bem encima do seu quarto, um raio caiu por perto ele deu um salto da cama, saiu derrubando tudo, abriu o quarto e saiu desesperado porta a fora, com o coração batendo perto da boca, foi parar lá no fogo de chão do galpão e por lá tinha dois peões, que estavam já aquecendo a água do chimarrão, pois o dia começava dar sinal lá no horizonte, era Gardelino e João das Cadelas, ficaram olhando Bastião só de ceroulas, com os olhos esbugalhados e começaram a rir. Bastião se deu conta dos seus trajes e correu de volta para seu quarto, quando chegou na porta, viu tudo escuro voltou correndo para o galpão e sentou-se com os dois peões.
    .Gardelino desconfiado perguntou:
    - Mas que cara é essa chefe, cadê a bombacha e parece que viu um fantasma..
    - Bobagem, isso não existe, é que tem uma cobra enorme no meu quarto, acho que é cruzeira, ela passou pelo meu corpo, dei um salto e sai correndo do quarto..
    - Vamos lá ver! - falou ele pegando um candeeiro que ainda iluminava o galpão..
    João Cadela pegou uma vara e com a adaga em punho penetraram no quarto do Bastião e nada foi encontrado, assim ele acendeu seu toco de vela e foi se vestir, constrangido pelo olhar desconfiado dos dois peões..
    A partir daquela data, Bastião passou a dormir com um candieiro acesso no seu quarto, se foi a valentia do homem.
    Qualquer barulho, ele saltava da cama, agarrava o cabo do revolver, mas começou a ter sonhos estranhos..
    Sonhava sempre com um Cerro, depois descia uma trilha e entrava dentro de uma caverna, na medida que os sonhos se repetiam eles clareavam o local.
    Era uma região pantanosa, passava pelos valos, que eram valetas cheias de água feita pelos Jesuítas, depois avistava o Cerro do Cipriano, a tapera tomada pelo mato, descia a trilha do gado e ao lado uma caverna, uma cobra e ele desviava e logo adiante encontrou embaixo de umas pedras um pote de barro, uma couro de vaca envolvendo dois rifles e uma espada.
    Seu sonho sempre terminava com um sobressalto da mulher que ele viu olhando para ele e se aproximando, aproximando e quando ela chegava subia na cama e vinha subindo por cima dele, ele acordava, suado e com um terrível medo, um medo maior que sua coragem.
    .Chica sonhava com quatro túmulos, simples no chão, o único que ainda tinha uma cruz, era onde o sonho terminava.
    .Bastião contava seus sonhos para Chica e ela contava o seu para ele.
    Ela disse que aquilo era um aviso.
    Bastião sabia onde era o lugar, conhecia bem a região, das suas troteadas, se tratava do Cerro do Cipriano e com Gardelino e João das Cadelas partiram para aquele lugar tenebroso, pois era de difícil acesso.
    Depois de passar longa parte com a água na ponta das botas, conseguiram chegar nas fraldas do Cerro do Cipriano, tal qual o sonho, subiram devagar e Bastião reconheceu tudo, até dizia para Gardelino e João, lá encima tem uma tapera, onde morava o bandido Cipriano..
    - Mas afinal o que vem buscar aqui Seu Bastião! - perguntou João.
    - Um pote, acho que deve ter ouro. – Falou Bastião.
    - Um enterro recebido em sonho? – completou a pergunta Gardelino..
    - Talvez!
    Dito e feito, a Tapera tal qual o sonho, o gado na volta, parou de pastar o todos olhavam aqueles homens estranhos.
    Depois desceu a trilha das gado, enfim chegou na boca da caverna, entraram uns 15 metros e de repente um cobra cruzeira enroscada.
    Quando João fez menção de matar o animal, Bastião levantou a mão e disse: - Não mate ela, no sonho eu passava pelo lado..
    Logo chegaram no amontoado de pedras e lá estava o Pote, as armas e Bastião disse:
    - Tem dois rifles aí, cada um pega um, a espada é minha. – Depois no pote tinha algumas moedas de pratas e ouro.
    No fundo do pote estava a mão seca da finada Aurora, agora ele entendia o que tinha que fazer..
    Voltou para a estância e junto com Chica, Gardelino e João Cadela foram até o velho cemitério no Cerro do Gideão, Chica apontou para a sepultura que ainda tinha uma cruz, depois de cavarem quatro palmos de terra encontraram os restos mortais de Aurora. Bastião então pegou aquela mão seca que estava enrolado num pano e juntou aos restos mortais que ali estavam. Enfim o corpo estava completo..
    Bastião nunca mais desdenhou uma história de assombração contada nos galpões, sabia que umas eram lendas e invencionices da peonada, mas vai saber qual.
    Ficava apenas mastigando o pedaço de madeira que fazia de palito e ouvindo com atenção e quando olhava o cerro onde estava o velho cemitério tirava o chapéu em reverência, fazia o sinal de cruz e depositava ele suavemente na cabeça e dizia baixinho: Descanse em paz Aurora!
    Fonte: Prof. Beraldo Figueiredo
    Fonte : Pampa sem Fronteira

Informações

A MÃO DA FINADA
CEP 98801640 - Outros, RS

Telefone: (55) 99659-5961

Formulário para contato