O canal chamou atenção na última semana após uma embarcação encalhar, causando um verdadeiro caos
Na última terça-feira, 23, o mundo se deparou com uma notícia um tanto quanto inusitada, um navio com cerca de 220 mil toneladas e 400 metros encalhou no famoso Canal de Suez. Dessa forma, maior do que a Torre Eiffel, o barco está interrompendo o fluxo da principal rota de comércio entre a Ásia e a Europa.
Inúmeras equipes tentam desencalhar o navio do canal. O problema é que, enquanto isso, mais de 200 barcos esperam pela liberação em ambos os lados da rota, que liga o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo.
Inicialmente, a Autoridade do Canal de Suez (SCA) optou por escavar o solo do canal a fim de liberar a proa da embarcação. Tendo o porto de Roterdã, na Holanda, como destino, contudo, o enorme navio sequer se moveu desde o início da operação.
E de imediato surgiu uma dúvida: como foi surgiu o canal?
Importância estratégia
Em 5 de junho de 1975, o Canal de Suez foi reaberto – ele permanecia fechado desde 5 de junho de 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, quando uma força de manutenção da paz da ONU estacionou no local.
Se do ponto de vista da engenharia o Canal de Suez não figura entre os grandes símbolos da construção civil erguidos ao redor do mundo, desde os primórdios dos seus traçados é inegável a importância estratégica atribuída a essa via que liga o porto egípcio Said, localizado no Mar Mediterrâneo, à cidade de Suez, no Mar Vermelho.
Isso porque ela descerrou a passagem para que embarcações naveguem da Europa à Ásia sem ter que contornar a África pelo Cabo da Boa Esperança, no sul do continente – o que demorava meses. Até hoje, essa zona navegável tem papel de destaque no comércio global.
Na história da elaboração da travessia de 195 quilômetros, registros mostram que abrir esse caminho era um sonho tão antigo quanto a dinastia do faraó Sesóstris III (1878 a.C.-c.1840 a.C.), que ordenou as primeiras escavações.
Daí em diante, a cada reinado, o projeto avançava alguns quilômetros para ser dado como completo no governo de Dario I, cerca de 500 anos antes de Cristo.
As técnicas utilizadas no período consistiam simplesmente na escavação do istmo e na colocação de pedras para a vedação. Todo o esforço era feito por mãos e braços de mais de 1,5 milhão de escravos. Em pelo menos duas ocasiões, primeiro no ciclo de Trajano e depois no do califa Omar, as areias do deserto trataram de impor a lei natural e fechar o que era uma precária via de navegação fluvial.
A decisão de abrir a passagem ressurgiu com força durante a campanha de Napoleão no Egito. Em 1832, o então vice-cônsul da França no país africano, Ferdinand Lesseps, recebeu a incumbência de implementar o projeto encomendado pelo general francês ao engenheiro Charles Pepère.
O trabalho de Lesseps foi facilitado com a morte do vice-rei Abbas Pachá e a ascensão de Mohammed Saïd ao poder. Saïd e Lesseps eram amigos e não tardou para que o novo monarca criasse a Companhia Universal do Canal Marítimo de Suez e colocasse o camarada Lesseps na presidência da empresa.
Mãos à obra
Foi só no século 19 que Suez ganhou status de obra de engenharia moderna, com o envolvimento direto de britânicos e franceses. Para ter uma ideia do que era a construção naqueles tempos, vale lembrar que nem carrinho de mão os trabalhadores conheciam. Em 1860, 50 mil pás e picaretas foram encomendadas da França. À imensa lista de escassez somava-se a mais brutal delas: a de água potável.
A primeira solução foi importar destiladores da Holanda – que logo se mostraram insuficientes, pois o consumo era de cerca de 15 mil litros por dia, enquanto a produção dos aparelhos não ultrapassava os 5 mil. O problema foi amenizado por volta de 1862, com a conclusão de canais de irrigação a partir das águas do Nilo.
Lesseps e seus homens ergueram também um pequeno porto para acomodar o equipamento importado da Europa e, mais tarde, para abrigar os navios que atravessavam o canal. Surgiu Porto Said no pantanoso Golfo de Pelusa.
Em frente foi construído o Porto Fuad, para receber oficinas e, depois, um pujante centro comercial. Em ambos, pela primeira vez, foram utilizados blocos de pedras de concreto no lugar de rochas naturais.
A abolição da mão de obra forçada no Egito gerou outra dificuldade no andamento da obra do canal. Dos 20 mil homens que ainda trabalhavam em Suez sobraram pouco menos de 5 mil – que prestavam serviço “voluntariamente”, segundo os registros da Association Lesseps, mantida na França em homenagem ao antigo diplomata. “Por essa época, começaram a utilizar equipamentos mecânicos que apareciam na Europa”, conta Carlos Racca, engenheiro da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
A principal inovação tecnológica com a entrada da França e da Inglaterra na edificação foi o uso de escavadeiras movidas a vapor, surgidas no início da industrialização no Velho Continente.
Foram necessários dez anos até a conclusão da travessia, de 1859 a 1869, o dobro do tempo previsto. “Em comparação, o Canal do Panamá é uma obra muito mais complexa, em razão do desnível entre os oceanos Pacífico e o Atlântico”, explica Racca. “Mas Suez impressiona pelo tamanho. E é uma pena que não haja registro de como se fez a coordenação de 40 mil indivíduos operando simultaneamente. Afinal, não havia curso de gestão de pessoas à época”, provoca ele.
Presença francesa
Estamos na era dos grandes impérios e, durante muito tempo, o canal, responsável por um impulso extraordinário no comércio global, foi palco de acirrada disputa entre os dois maiores da época: Grã-Bretanha e França. “Ambos tinham projeto de inclusão da região do Oriente Médio como área de influência cultural e econômica da Europa”, destaca Murilo Meihy, professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na ocasião, conta ele, os britânicos executavam um plano de colonização verticalizada que consistia em criar um corredor ligando o Egito à África do Sul. Já a França tentava instalar uma versão horizontal, do Saara ao Egito.
A luta pela supremacia no país africano gerou lances, por vezes, engraçados. Enquanto se preparava a festa de abertura do Canal de Suez, o monarca egípcio Ismail Pachá, sucessor de Mohammed Saïd, convidou a imperatriz francesa Eugenie, mulher de Napoleão III, para inaugurar a via a bordo do navio L’Aigle.
Tudo parecia perfeito não fosse a manobra do britânico George Nares. Na madrugada do dia 16 de novembro de 1869, o comandante mandou apagar todas as luzes de sua embarcação, enfrentou a escuridão e literalmente furou a fila.
O caminho da nacionalização
A história do Canal de Suez nos remete a períodos de conquistas, intensas disputas coloniais e conflitos entre nações e empresas. Os desentendimentos já eram uma constante numa fase em que ainda não havia a exploração petrolífera no Oriente Médio. A descoberta do “ouro negro” décadas depois, já no início do século 20, só fez acirrar os ânimos na região.
Inicialmente, Egito e França eram os proprietários da obra. Mas a sorte mudou para o lado dos britânicos quando, em 1875, o Egito declarou que não tinha condições de arcar com sua dívida e vendeu sua parte aos súditos da rainha Vitória.
Com a aquisição, o Reino Unido garantiu sua rota para as Índias e as tropas britânicas instalaram-se às margens do canal para protegê-lo em 1882. Os ingleses passaram a ter controle quase completo ainda sobre a economia egípcia, então maior produtora de algodão do mundo – matéria-prima fundamental para a moderna indústria têxtil inglesa.
Ocorre que a Inglaterra pôs em prática no Egito o mesmo modelo de colonização que desenvolvia em outras regiões sob seu domínio, preservando no poder uma elite local submissa aos interesses britânicos. Em 1888, contudo, a Convenção de Constantinopla estabeleceu a neutralidade do Canal de Suez – e instituiu o uso livre da passagem.
Com o início da Primeira Guerra Mundial, o Egito vislumbrou novas oportunidades de mudanças, apostando que, encerrado o confronto, as tropas britânicas deixariam o país. Mas não foi o que aconteceu. Inglaterra e França não só pretendiam permanecer no Oriente Médio como almejavam ampliar o controle sobre a região, incluindo, é claro, Suez.
Isso ficou provado com o acordo secreto Sykes-Picot, assinado pelas duas potências em 1916. Em nova reação, agora após a Segunda Guerra, o Egito pressionou pela retirada das tropas inglesas do canal. E, em meados de 1956, seu então presidente, Gamal Abdel Nasser, decidiu nacionalizar o canal e os bens da companhia que o administrava, uma sociedade entre França e Reino Unido, principais beneficiários das taxas pagas por navios petroleiros que trafegavam por ali.
A decisão foi tomada depois que o Banco Mundial, com a retaguarda dos Estados Unidos e da Inglaterra, negou um pedido de crédito para a construção da gigantesca Barragem de Assuã no Rio Nilo. Nos dias que se seguiram, maciças mobilizações populares ocorreram em todo o país. Em represália, os bens egípcios foram congelados e a ajuda alimentar, suprimida.
Além disso, Nasser denunciou a presença colonial dos britânicos no Oriente Médio e apoiou os nacionalistas na Guerra da Argélia. Em resposta, o Reino Unido e França, com a participação de Israel, se lançaram numa ação militar, a Operação Mosqueteiro, em 29 de outubro de 1956. A crise do Canal de Suez durou uma semana, até que a Organização das Nações Unidas confirmou a legitimidade egípcia e condenou a investida comandada pelos britânicos.
Em 1967, estourou a Guerra dos Seis Dias e o canal ficou fechado até 1975, quando, por ocasião da Guerra do Yom Kippur, também conhecida como Guerra Árabe-Israelense, a passagem foi recuperada e as fortificações israelenses, destruídas. As forças de paz da ONU só deixaram a região em 1974.