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02/10/2018 10:08


Cruz Missioneira ou Cruz de Santo Ângelo?

Uma história a ser registrada, Mário Simon.
É sempre interessante a reação das pessoas que veem pela primeira vez a chamada Cruz Missioneira, a cruz de quatro braços. E uma indefectível pergunta assoma à boca:
- Por que tem quatro braços? O que significam?
Estamos falando da cruz monolítica, aquela que está plantada ao lado do Museu das Missões, no sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões - RS. O traçado perfeito, os quatro braços, tudo talhado em uma pedra só, pedra grés, chamam a atenção. E milhares de turistas levam para casa uma fotografia tirada ao pé dessa grande e misteriosa cruz.
Hoje, dá para afirmar que a Cruz Missioneira transformou-se em símbolo generalizado das Missões. Miniaturas em couro, ferro, bronze, cerâmica, madeira, latão, ouro, prata, pedra e até em osso são vendidas como lembranças dessa região missioneira. Cartões-postais, cartazes, pinturas em quadros, painéis, pirografias, bandeiras, estandartes, brasões municipais, réplicas em trevos de acesso para as cidades da Região das Missões, camisetas, matéria para composições musicais, denominação de festivais e tantas outras formas de comunicação legitimam a Cruz Missioneira como representação simbólica de uma história épica compartida por todos os habitantes da região. Sem imposições, sem debates, sem leis, tal cruz se impôs de forma natural, ao correr da tradição, do uso, da crença e da apropriação de sua simbologia.
No entanto, quantos a conhecem? O que significou? De onde veio? Por que está em São Miguel? Qual o seu verdadeiro nome? Esse é o desafio do historiador, e a isso estamos nos propondo numa pesquisa que deverá ser publicada em livro ainda neste ano de 2017.
O QUE SE SABE DA CRUZ
Foi o padre Arthur Rabuske, S.J., esse dedicado jesuíta, que estudou primeiro, ao que consta, essa cruz, a cruz que está em São Miguel, e elaborou algumas ideias a respeito. O resultado de seu estudo está numa publicação que faz parte dos “Cadernos”, da antiga FUNDAMES – hoje Universidade Regional Integrada das Missões e do Alto Uruguai (URI), o Caderno nº2, editado em junho de 1984. Ele aborda o tema com o cuidado de historiador meticuloso que foi. Aliás, é nesse trabalho que o padre Rabuske sugere que a cruz seja denominada Cruz Missioneira, já que não encontrou para essa cruz, respaldo, nem bibliográfico e nem iconográfico para chamá-la de CRUZ DE LORENA, ou CRUZ DE CARAVACA, como ainda se ouve assim denominá-la.
No entanto, Rabuske deixa muitas perguntas sobre a cruz, sem respostas. Algumas questões, como a de que não se sabia como a cruz foi parar em São Miguel, nem onde foi esculpida. E se foi esculpida em outro lugar, onde esteve antes de ser colocada em São Miguel.
Um documento que encontramos no Arquivo Histórico Municipal de Santo Ângelo é muito revelador. Trata-se de uma carta datada de 20 de maio de 1938, assinada por Augusto Brando, encarregado do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para o Rio Grande do Sul, que, a mando do diretor deste órgão federal, dr. Rodrigo Mello de Franco Andrade, pede ao prefeito municipal de Santo Ângelo, Sr. Cezimbra Machado, que autorize levar “a cruz dobrada – obra jesuítica”, que se encontrava no “cemitério desta cidade”. Na mesma carta, o Prefeito autoriza a remoção da cruz dobrada, para São Miguel, onde está até hoje.
A Carta na íntegra conservando a ortografia da época:
(No topo da carta está o despacho do Prefeito Cezimbra Machado)
Attendido.
Archive-se
Em 20-5-38
(Segue assinatura do Prefeito)
Santo Ângelo, 20 de Maio de 1938
Exmo Sr Coronel Prefeito Cezimbra Machado
M.D. Prefeito de Santo Angelo.
Exmo. Sr.
Com a presente trago ao conhecimento de V. Ex. que no cemitério desta cidade encontra-se uma cruz dobrada – obra jesuítica – a qual se acha arrolada no Tombo do Patrimonio Historico e Artistico Nacional, no Rio de Janeiro, segundo informação recebida do Dr. Rodrigo de Mello Franco Andrada – diretor daquela repartição.
Destinando-se pois a citada peça ao Muzeu das Missões Jesuiticas, em S. Miguel, neste município, venho solicitar a V.Ex. o especial obséquio de entregal-a para o citado muzeu.
Agradecendo a valiosa cooperação de V. Ex. aproveito o ensejo para subscrever-me com alta estima e consideração
De V.Ex.
Mário Simon 
Augusto Brando
Encarregado pelo Patrimonio Historico e Artistico Nacional
(Segue uma assinatura)
Mas a grande indagação é a da procedência dessa cruz que está em São Miguel. Rabuske levanta dúvidas quanto à afirmação tradicional de que essa cruz foi recolhida do cemitério jesuítico da redução de São Lourenço, e transportada, não se sabe em que data, para Santo Ângelo. Essa hipótese tem origem nas informações do autor de “As Missões Orientais e Seus Antigos Domínios”, Hemetério Velloso da Silveira. Ele afirma tê-la visto no antigo cemitério da redução São Lourenço, em 1855 e, depois, que a viu, em 1886, no cemitério de Santo Ângelo (fundos do atual Colégio Verzeri, na quadra formada pelas ruas Pe. Roque Gonzales, Av. Getúlio Vargas, Av. Brasil e Rua Osvaldo Cruz. E diz que nessa data de 1886, já a viu “partida ao meio da haste”, isto é, quebrada.
Duas situações intrigam muito nas afirmações de Velloso: primeiro, que ele viu a cruz pela primeira vez em 1855, em São Loureço e só a viu outra vez em 1886 em Santo Ângelo; mas ele só escreveu isso em 1908, quando tinha mais de oitenta anos. Não poderia ter se equivocado? A segunda situação é que Velloso desenhou a tal cruz que viu em 1855, e muito bem desenhada, e a traz publicada no livro. Um simples exame basta para notar as enormes diferenças entre a cruz que ele viu, e desenhou, e a Cruz Missioneira de que falamos. A dele tem os braços e a parte superior terminados em uma espécie de folha de trevo de três pontas, isto é, arredondadas, enquanto a verdadeira Cruz Missioneira tem as pontas dos braços e da parte superior talhadas verticalmente e horizontalmente, respectivamente. Isto faz uma diferença muito nítida de que não se trata da mesma cruz.
A CRUZ PODE TER SIDO SEMPRE DE SANTO ÂNGELO
Foi essa dúvida de Rabuske e a perturbação de pesquisador que nos levaram a aprofundar sobre o assunto. O resultado destinava-se a uma publicação ainda em 1978, pois as evidências já descobertas levavam a crer que a cruz monolítica que está em São Miguel, a Cruz Missioneira sempre foi de Santo Ângelo até seu translado para São Miguel. Tudo levava a crer que Hemetério Velloso confundiu-se e, com ele, muitos outros registros de historiadores e de depoimentos orais. 
Uma das evidências que estamos perquirindo está numa fotografia tirada em 1912 ao pé da cruz em pauta. Perfeitamente nítida, em negativo de vidro, não há possibilidade de fraude. A análise técnica dessa foto e de mais outras quatro deverão revelar a provável data em que uma das hastes foi quebrada. A hipótese que perseguimos é simples: se as fotos de 1912 e outras revelarem uma cruz inteira, sem sinais de haste quebrada, como Velloso poderia ter visto a mesma cruz partida em 1886? E mais, o local das fotos da cruz em referência, que a pesquisa dispõem, podem levar a questionar o local onde essa cruz  estava antes de ser levada ao cemitério antigo (fundos do atual Colégio Verzeri). Havia outro cemitério mais antigo, que ficava nos fundos da atual catedral, originado do mesmo cemitério da Redução Jesuítica. Depoimentos orais confirmam a presença dessa cruz ali, no início do século.
É verdade que a atual cruz que está em São Miguel teve um de seus braços quebrado em certo momento da história. Quando foi? Ora, será exatamente esse fato que conduzirá à solução formal de sua procedência. Um dos depoimentos que colhemos, o do Sr. Severino Verri, fala de seu tempo de mecânico da Prefeitura de Santo Ângelo. Entre outras afirmações, diz que ajudou a colocar a cruz no antigo cemitério da cidade, o que estava na quadra do Colégio Verzeri, depois de 1920, e que ele mesmo dirigiu um caminhão Ford para levá-la a São Miguel depois de 1930, e que, nessa viagem, a cruz quebrou-se. Claro que é uma informação oral e, como tal, não serve como comprovação final. Mas juntando essa informação com depoimentos de outros mais,  como o do Sr. Homero Bittencourt e do Sr. Elemar De La Rue, os pontos de coincidência vão alinhando a história que estamos buscando. Os negativos  de vidro de que falamos antes são originários, segundo consta na caixa onde estão guardados os negativos, de uma visita que o pai do Sr. Elemar De La Rue fez a Santo Ângelo em 1912, e foram tiradas junto à cruz que, naquele momento, estaria num cemitério abandonado nos fundos da atual Catedral Angelopolitana. 
Esse é um dos pontos cruciais da pesquisa que estamos fazendo. De qualquer maneira, se a história oral não for suficiente, vamos apresentar outros elementos que podem nos conduzir a dizer que a cruz sempre esteve em Santo Ângelo, que aqui foi lavrada e que bem poderia se chamar de “Cruz de Santo Ângelo”.
Finalmente quanto à procedência da cruz de quatro braços, com o formato da cruz monolítica que está em São Miguel, temos, hoje, essa questão mais clara. Sabe-se que a origem desse tipo de cruz é, realmente, da cidade de Caravaca de la Cruz, província de Múrcia, Espanha. Esse símbolo maior do cristianismo, de devoção, proteção e milagroso, teria acompanhado para a América espanhola os padres missionários de diversas congregações, especialmente franciscanos e jesuítas e, ainda, imigrantes, todos originários da região de Caravaca de la Cruz, desde meados do século XVI. 
Especificamente nas Missões Jesuíticas da Província do Paraguai (que incluía as reduções dos Sete Povos, Brasil, as da Argentina e as do Paraguai), como introdutores dessa cruz citam-se os nomes dos padres Francisco José Robles e Antônio Espinosa, ambos de Caravaca e que tiveram certa notoriedade nessas Missões. O padre Robles chegou ao Paraguai em 1680 e Espinosa um pouco mais tarde.
Escritor e historiador Mário Simon 
Vídeo: Programa da Projeção Mapeada  
Site: Texto Roteiro Lindoia, a Índia de São Miguel 2016 
Site: Texto Roteiro de Morte E Vida De José Tiaraju, 2015
Notícia: Ritual da Lua Cheia 
Notícia: Sepé Tiaraju, a Saga De Um Herói por Clayton Cardoso 
Notícia: Apresentações Literárias no Lançamento do Livro de Mario Simon 
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