ESTIGMAS : Aquele moço ali parado é o José, filho do João Cambraia. Faz um ano que o conheci, ele que não aparecia na sociedade, fugia das pessoas, talvez para que não vissem seu defeito. Saibam que José vivia num fundo de campo, peão de estância. De pouca prosa, ninguém lhe sabia o paradeiro. Sobre a família, desconversava ou silenciava, como se uma mágoa lhe sumisse a voz.
Foi numa das visitas veterinárias, minha profissão, depois de vacinar o gado, junto ao ranchito donde morava o José, o solitário. Após o mate, assim, no repente, como em desabafo, segredou o que lhe doía no peito: a raiva, a revolta, principalmente do seu pai. E só lhes conto porque me autorizou, pra servir de ensinamento, disse ele.
Piazote de treze anos, não lembra direito, fora pescar num lugar proibido; que ali tinha muita cobra, que a sanga era funda, coisa e tal. Pois ali é que dava peixe, onde ninguém pescava. E o pai dele flagrou-o ali. Era daqueles enérgicos, que batia para depois perguntar, que não aceitava respostas, ou desculpas. Puxou do chicote, um de três pontas e, na fúria de um pai desobedecido, passou a bater, uma, duas, três, não soube quantas vezes. Tentou fugir pela barranca, as pontas de nós lambendo as costas, a cabeça; entre lágrimas mostrou as cicatrizes, erguendo a camisa. Que o pai batia inda mais se fugisse, porém o medo fora maior. Numa das açoitadas uma ponta de nó furou na vista, assim de vazar o olho. Após o mal feito, percebendo o que fizera, obrigara-o a silenciar, que dissesse à mãe que foi espinho, resultado dum tombo.
Não deu. Não conseguia olhar para o pai, para a mentira, era isto que mais doía, pois que lhe ensinaram a nunca mentir. E fugindo de casa foi para o oco do mundo, que só ele tinha um olho furado. Soube mais tarde que sua mãe tirou sua vida, matou-se. Isto só fez aumentar sua mágoa, ódio! Também dos que lhe perguntavam: “que foi no olho?” Saí de lá com os olhos embargados, abarcando um naco de dor do José, do Zarolho, como alguns lhe chamavam. Pois fui lá.
- João Cambraia? E apontando o dedo, um vizinho apontou o que mais parecia uma tapera. Dois cachorros magros latiram sua magreza dando alerta.
- O patrão? Lá no quarto, disse-me a velha senhora. Em sujos lençóis deitado, leito de morte, o João contou sua desgraça, ele que tinha um rancho bonito, mas que um dia batera no filho, descarregando sua raiva pelo tempo perdido de procurá-lo, que após a surra o filho fugira sem paradeiro, que sua esposa morrera de tristeza e que a culpa era sua.
- Seu filho não é o José que tem um olho furado?
As lágrimas brotaram ainda mais daqueles olhos cansados. Numa espécie de pedido, segredou que não queria morrer sem o perdão do filho. Somente teria paz se reencontrasse a quem tanto amava, a quem desgraçou, inclusive fazendo-o mentir para a mamãe, logo ele.
Pois fiz. Convenci o José e juntos retornamos ao rancho, de a cavalo. Pelo caminho, ao passar o riacho, ele apontou-me uma pedreira barranca abaixo; entendi ter siso ali a desgraceira.
Os olhos tristes do pai se iluminaram ante a presença do filho. No abraço das almas, a luz do perdão, do amor, rejuvenesceu os corações e aquela morada.
Soube que seu pai morreu no dia seguinte, descansou em paz. E o José, renovado, restaurou o rancho, a tia por companhia. Agora está aí na festa, ele que se escondia do mundo. Ao cumprimentá-lo recebi um sorriso, o primeiro que nele vi. Percebi mais uma vez que nunca é tarde para nada!
Conto do livro URSO PRETO
Humor: Frases do ENEN: "A prinssipal função da raiz é se enterrar no chão".
"As aves tem na boca um dente chamado bico".
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