Quem vê os rodados das carretas enfeitando porteiras ou mesmo transformados nem bancos artesanais ornamentando casas no panorama citadino nem sempre se dá conta do quão as carretas puxadas a boi, veículos de múltiplas utilidades, foram primordiais para a construção dos alicerces e ascensão do Rio Grande do Sul desde a suas origens na conquista da terra, nos primeiros povoamentos, no cenário bucólico, nas formações das vilas onde muitas se tornaram cidades, junto aos imigrantes, nas estâncias, nas vivendas, enfim, riscando o chão gaúcho elas tiveram um tempo de brilho e notoriedade.
Além de servirem para o transporte de produtos da agropecuária elas eram utilizadas como uma espécie de trem de carga carregando sal, erva mate nativa, lenhas, couros, peles, lãs, charques, remédios, munições e bugigangas. Serviam inclusive para o transporte das parteiras e transportes de pessoas em geral, para se fazer mudanças e até mesmo, de modo improvisado, como prefeituras, capelas, presídios, bolichos ambulantes, ambulâncias, carros funerários, transportes de vigas do mato e nos contrabandos. Por incrível que pareça no aconchego debaixo do colmo protetor da quincha (cobertura geralmente de palha ou capim) que atacava dos sóis abrasadores, invernias, certas carretas serviram sob a lua e as estrelas para inúmeros casos amorosos sérios e outros movidos pela prostituição.
Junto delas nas horas de descanso os carreteiros que muitas vezes eram sujeitos meio semi-bárbaros e nômades neste ofício aproveitavam para tomar mate, contar causos junto ao fogo de chão nas rondas e nas pousadas que se faziam no estendal da estrada e foi dessa época que surgiu o arroz à carreteiro prato este saboroso e que está inserido na culinária e na cultura deste Estado.
No Brasil as carretas, que tiveram alta primazia, ajudaram na movimentação e progresso da indústria açucareira e a indústria do café.
A carreta pode ser puxada por uma, por duas ou mais juntas de bois, sempre atrelados, onde cada boi tinha um nome ou apelido.
O touro, quando terneiro, após ser castrado era adestrado desde pequeno para na triste sina puxar a carreta levando picanha nas costas, açoites e nos ouvidos o lamento do rangido dos eixos.
Em Bossoroca os principais carreteiros por ofício foram Aparício Kersch, Augusto Ribeiro, Benvindo Padilha, Belizário Grosso, Leoveral de Souza Oliveira, Olímpio Trindade, Praxedes Ferreira, Salmeron Antunes de Souza, João Rosado, Harácio Bicana, Martin José do Reis, Flor Sanábria e Nico Viana.
Quanto ao tamanho as carretas são classificadas como “Carreta Inteira” que pesa aproximadamente 450 kg e carrega aproximadamente 1.500 kg, “Carreta Três Quartos” pesa 380 kg e carrega em torno de uma tonelada, “Meia Carreta” pesa perto de 300 kg e carrega até 800 kg e a “Carreta” que pesa em torno de 220 kg e carrega até 500 kg.
Muitas peças fazem parte de uma carreta, ou seja, as principais são a mesa (leito ou estrado) e nela estão aglutinados o cabeçalho, as chedas, recavem (parte posterior do carro de bois), focinheira, muchachos (pontaletes que servem como escoras), cadeias, chavelha (peça de madeira para ser colocada num orifício), fueiros (varas roliças que vão no lado da mesa), assoalho (que faz a base do quadro da mesa), empulgueira (lança) e salva-vida. O cabeçalho que é uma longarina comprida ligada à mesa. Toldo que é uma armação com a coberta. E a coberta geralmente era de capim de burro ou capim santa-fé.
As cevas que são os anteparos para reter produtos menores. O rodado que são duas peças conjugadas compostas de cambotas, raios (peças de madeira de lei em forma de leque que ligam a maça às cambotas), chapas, maça (parte central, orifício, da roda feito de cerne de madeira), buzina e contra-buzina (tubo de fero fundido que vai dentro da maça contra o atrito do eixo). O eixo é uma peça de madeira que liga uma roda à outra. A chapa é o aro de ferro, ou seja, a cinta que cobre a circunferência da roda. E a roda gira na extremidade do eixo. O mata-boi é a amarra que prende a mesa ao eixo.
As rédeas também chamadas de rejeiras, que são os sovéus de couro torcido que podem ser com ou sem pêlos são amarradas em volta de uma aspa e da orelha dos animais.
A picana é uma taquara comprida para cutucar e avivar os animais.
No conjunto de tração para unir os bois e puxara a carreta tem a canga, canzil, ajoujo, brocha (tira de couro cru), tamoeiro (peça de couro que prende a canga ao carro de boi), cambão também chamado de tiradeira, passadeira ou fuzil, tapa canga e corda do coice.
Junta ou juntas são as parelhas de bois unidos pela canga.
As madeiras mais empregadas nas carretas eram ipê, angico, guajuvira, marmeleiro, cabreuva, pinho, açoita cavalo, amarilho, guabiju, entre outras.
Está cada vez mais raro aquele cenário das carretas que povoaram minhas retinas enquanto criança. Hoje praticamente não se vê mais nas estradas. Restam poucas por aí servindo pequenos produtores.
Portal: Escritor João Antunes poeta, historiador e compositor
Facebook = João Carlos Oliveira Antunes
Bossoroca (55) 9999-42970 joaoantunes10@terra.com.br
DE QUANDO FUI CARRETEIRO
Guardo lembranças do tempo que eu carreteava
Quando eu andava nos quadrantes destes pagos
Firme na lida campo afora e corredor
Me fiz senhor desde São Luiz até Santiago.
Carreta velha perfilada pro trabalho
Do cabeçalho era um luxo até a cambota;
Canzis e cangas, ajoujos e tiradeiras
A sua história monta um livro de lorotas.
Os bois da ponta: o Fumaça e o Pintado
E o bois do coice: Colorado e o Negrinho
Eram mansinhos, pro serviço, veteranos,
“Fibra e tutano” pra enfrentar tantos caminhos.
Fui carreteiro num tempo que já se foi
Pois eu, os bois e a carreta cantadeira
Mais o gatiado e um cusco, flor de amigo,
Foram comigo meus parceiros de primeira.
Quantas jornadas deixando rastros de poeira
Semana inteira transportando erva e sal...
Eu fiz com gosto sob o toldo da carreta
Cumprindo metas neste meu Pampa rural.
Hoje, mais velho, de melena tordilhada,
Ganhei da estrada do viver uma saudade
Que a cada ano fica mais arrincoada
Das carreteadas que eu fiz na mocidade.
Letra: João Antunes, Vasco Rodrigues e Gorge Bittencourt.