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08/11/2019 09:52


Otávio Reichert - INTEGRANDO 08/11/2019

Realidades: De 2019, vivenciado pelo filho Leandro Reichert. Fará parte do livro “Entre o Rio e a Floresta”, narrando experiências compartilhadas em comunidades indígenas no Alto Rio Negro, noroeste do Brasil. Eis ...

NOITE DE VENTO, NOITE DOS MORTOS

Com a falta de energia elétrica a noite parece chegar mais cedo e seu manto de escuridão ser ainda mais negro. Nestas horas, pouco resta além de recolher-se à rede e lutar com o sono que teima em não aparecer logo no início da noite. O remédio tem sido sacar uma lanterna e ler algum livro, ou relê-los, pois esgotei a biblioteca do meu Kindle (leitor de livros digital) há algumas semanas. Desta vez não funcionou. Foram horas de leitura e nada de sono. A certa altura desisti, apaguei a lanterna, guardei o Kindle e forcei o sono. Em vão. Ventava bastante e o assobio do vento pelas frestas da parede de madeira da casa compassavam o balbuciar das palmas dos açaizeiros tremulando no ar. A chuva veio sem pedir licença, salpicando as folhas de zinco como se fossem pedras, e não água, que despejava dos céus. Durou cerca de uma hora, e então tudo se acalmou e assim permaneceu até a chegada dos primeiros sinais de luz solar. Isto para mim.

A manhã estava cinza e a terra ainda molhada. A triste notícia do que se passara na noite anterior logo se espalhou. Djorleni, esposa de José, que havia me acompanhado na viagem à São Gabriel da Cachoeira, entrou em trabalho de parto, porém a criança não resistiu e veio ao mundo sem vida. Diga-se não haver médico na comunidade. 

Fui até a casa da família, onde havia um pequeno caixote de madeira posto sobre uma mesa no centro da cozinha. Pessoas sentavam em bancos improvisados em torno da mesa e do corpo desfalecido. A mãe se recuperava do parto e da perda do filho em repouso no seu quarto.

Avistei José na varanda no fundo da casa. Fui a seu encontro e dei-lhe um abraço e os pêsames pela perda do filho. Pude perceber um pouco de surpresa de sua parte ante meu gesto, talvez não habitual em sua cultura. Contou-me que passara a noite em claro, porém pela sua fala tranquila percebi que já aceitava o que havia acontecido e sentia-se aliviado que a esposa não corria risco de vida. 

Entre os presentes havia um certo sentimento de tristeza, mas fiquei com a impressão que eles aceitam com mais naturalidade a morte. Ou talvez as lamentações mais sentimentais tenham acontecido antes de eu chegar. 

Uma rústica cruz de madeira contendo o nome e a data de falecimento foi trazida para perto do também rústico caixote de madeira, tudo feito ali mesmo e pela família, afinal a funerária mais próxima deve estar a alguns bons dias de viagem de barco.

Não era meio-dia quando pregaram a tampa do caixote. As crianças se puseram no entorno dele e os adultos logo atrás. Damo-nos as mãos. Orações e um hino evangélicos foram proferidos pelo pastor e, para minha surpresa, foram as crianças que prontamente agarraram as duas cordas amarradas ao caixote e iniciaram o cortejo até o pequeno cemitério da Galilea. A cova já estava pronta. Mais orações e cantos e então enterraram-no. A cruz com seu nome próxima das outras seis ou sete cruzes espalhadas em meio ao capim crescido do cemitério da Galilea. 

Os adultos voltaram a seus afazeres e as crianças foram brincar.
 
Cemitério: Visitamos algumas lápides de entes queridos, em Independência. Foi triste ver inúmeros túmulos sem identificação, pois que meliantes arrancaram as letras para venderem como metal, aos quilos. Em outro cemitério daquele município, na Esquina Araújo, uma das capelinhas servira como depósito de alguns pacotes de drogas, as quais foram descobertas por cães farejadores, isto após denúncia.

    Humor: Fim de tarde, entrou no cemitério com flores para oferecer à esposa. Nisto viu uma jovem menina caminhando ali próximo. Após a oração, já escurecendo, viu-a novamente a perambular, ao que perguntou: - Olá! Você não tem medo de caminhar sozinha pelo cemitério?

- Quando era viva eu tinha...

 

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