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30/08/2018 11:16


O ANALFABETO Conto de Otávio Reichert

Este conto, que conquistou Menção especial no concurso Internacional de Contos
“O ANALFABETO” é um dos 21 contos publicados no livro A Biblioteca está Viva, e agora? 
Publicação da ASES - Academia de Santa Rosa, durante a 14ª Feira do Livro de Santa Rosa.

         Os tempos eram outros! O presente do patrão, dito bem antes do casório, o de residirem no campo das sesmarias. Como a cumprir ordens, e peão de estância obedece, a carroça levou alguns apetrechos e muitos sonhos. Foi lá o nascimento do Feliciano, assim batizado, o patrão por padrinho. Campo livre, por lindeiro o rio Piratini, vista a sumir no horizonte quando céu aberto.
O ranchito ficava a três léguas da fazenda e a cinco do povo. Mas isso pouco importava, assim pensavam, até se darem conta que o Feliciano precisava ir para a escola, pois já lhe faltavam dedos na mão para contar sua idade. De a cavalo não dava, e mesmo que o patrão o quisesse, o carro não chegava até eles, que barroca era o que mais havia.
Levá-lo para a casa da vovó? De jeito nenhum! Ao tocarem no assunto com o patrão este, mais pensando nos seus rebanhos e cavalos crioulos, se fez de entendido com discurso direcionado:
- Deixar uma criança em mão alheia é perigoso, e na cidade não há emprego para vocês. Cuidem do campo, que assim ficam bem. A senhora, Dona Rita, não sabe ler e escrever? Pois que ensine o menino! Pouco carece estudar. Mais importante é aprender as lides campeiras, e disso sabem ensinar o gurizito.
Completou oito anos, depois o nono, e vez ou outra aflorava-se o assunto: 
- O que vai ser dele no futuro? Não há de ser nada, o menino é inteligente! Já aprendeu a assinar seu nome, e inté fazer a contagem das manadas aprendeu. E tem outra: sabe tudo de rédeas, inclusive fez a doma dum potrilho, e o patrão, de bom que é, presenteou-o no aniversário de 11 anos. 
O que mais lhe fascinava eram as histórias jesuíticas, principalmente as do Antônio Sepp. Pelas leituras do pai, soube que alguns o condenavam, pois que os indígenas o acusaram de maus tratos. No mais, era um semideus por tudo que fez. O padre, este tinha na música seu maior dom, mas era também arquiteto, pintor, médico e outros ofícios. Ele que descobriu o ferro durante a construção da Igreja de São João Batista. Imagina! Ele sabia falar, ler e escrever em várias línguas. E vindo da Europa, aprendeu o Tupi-guarani e, assim, catequizou milhares de índios. Num dos livros do historiador Mario Simon, lia-se que Antônio Sepp foi um homem polivalente e poliglota, palavras que nem o pai soube explicar. 
- O quê? Já fez dezessete anos? Terá de se alistar em breve. Mas caso não precise servir, já feito homem então, farei gosto de contratá-lo pras lides daqui, que daí começo a pagar pro moço.
Abdicando de São Luiz Gonzaga, o quartel mais perto, a seu pedido o pai alistou-o no regimento de Santo Ângelo. Dentre as interrogações, perguntado foi se era voluntário para servir a pátria. O sonoro “Sim!” do Feliciano agradou ao tenente, que de imediato encaminhou-o ao barbeiro, dali saindo com corte zero. Porém logo seu analfabetismo viria à tona, quando outro conscrito ditou a sentença: o Feliciano é Analfabeto! E assim apelidado, a alcunha se sobrepôs ao nome de guerra, menos para seu novo amigo, o Urbano, cujo nome justificava sua origem, soube depois.
Na biblioteca do Exército, o Urbano fazendo-se de narrador, viajavam pelas históricas atrocidades do alemão Hitler, pelos desertos viajados por Napoleão Bonaparte, ele que invadiu a Rússia. Das de acá, nas prediletas as aventuras do legendário general gaúcho Manuel Luís Osório, o Patrono da Cavalaria.
Vez ou outra o Urbano lhe fazia companhia na faina das baias, estas sobrando depois do quartel se tornar mecanizado. Diferente do datilógrafo auxiliar de sargenteante, o Feliciano aprumava ração e água, principalmente aos animais de soga, os da fase de doma ou da lida diária.
A saudade doía. Como estariam seus pais? Também lhe faltava o silêncio das campereadas, das pescarias. Alvorada e toque de recolher, quando se deu por conta findava-se o ano obrigatório.
Quanta honra! Não é que o comandante em pessoa foi lhe perguntar se queria engajar? Mas também, deixava o tordilho dele brilhando, tanto pelo capricho da escova diária como dos nacos de rapadura que lhe dava, uma das manhas repassadas pelo pai. Tristeza do Feliciano foi seu melhor amigo não querer permanecer e, licenciado, foi na primeira turma.
Cavalo encilhado não passa duas vezes, e ele sabia disso. Para alguns foi obrigatório, não para ele, o primeiro inscrito ao Mobral, este feito dentro do quartel. Quando sentou-se pela vez primeira na classe escolar, na confusão de ideias, vergonha e timidez, ao nome “Feliciano!” a emoção fez faltar-lhe a voz, e o “presente” não saiu.
No segundo engajamento, já sabedor da escrita, o Feliciano foi inscrito em curso militar. Estudos e inteligência são valores distintos e, o antes analfabeto, meses depois escrevia sua segunda carta, a mais feliz, que seus pais só receberam mês depois, num 23 de agosto. Fora aprovado no curso, e seria promovido a cabo no Dia do Soldado. Convidava-os para prestigiar sua conquista... Faltavam dois dias. 
Foi um Deus nos acuda! Na leitura alusiva, sua mãe derramou-se em lágrimas, e mal ouviu a frase final: “Promovo o soldado Feliciano a Cabo, e designo-o para as funções de Chefe das Baias.”
Quanta emoção! Quem os trouxera fora o patrão, que exclamou após a formatura: 
- Vejam só o piazote... não é que ficou elegante!
Nem tudo são alegrias. Já noivo, o Feliciano soube das transferências dos animais e do quartel* como um todo, este para o Paraná. Já os cavalos seriam levados para a Coudelaria do Rincão. Por maior que fosse seu apego, em nome dos estudos abdicou dos campos são-borjenses, preferindo a distante cidade de Rio Negro - PR.
Casório apressado, juntos partiram das Missões rumo a novas aventuras, embarcando grandes aspirações, a citar o Supletivo e estudos universitários, estes realizados concomitantes ao trabalho da caserna. Não fosse ter findado o Ginásio e teriam lhe negado reengajamento, pois dali por diante o Exército exigia nível escolar para a permanência e incorporações. 
O coração fica preso às origens. Assim que transferido para a reserva, malas prontas, retornaram à querência, para alegria de todos. Foi num domingo, sol bonito, no Brique da Praça santo-angelense, que um grito retumbou por entre as vozes:
- Analfabeto!
Assim como nosso nome nos soa familiar, também ao Feliciano o foi, inclusive reconhecendo a voz, pois antes mesmo de o ver, respondeu: 
- É você, Urbano?
Três décadas haviam se passado desde a última prosa. Após relembrarem o tempo comum, passaram a contar suas proezas. Embora todo alegria por revê-lo, o Feliciano ficou desapontado com a narrativa do amigo. Como pôde o competente datilógrafo, antes tão compenetrado, ter parado no tempo em relação aos estudos e ascensão pessoal, inclusive há anos sem emprego, vivendo de biscates esporádicos?
Urbano, porém, não cabia em si, soltando um “Não diga, tchê!” para cada conquista dita: - que foi promovido a sargento, que concluiu dois cursos universitários, inclusive exercendo docência em língua espanhola. Foi nessa passagem que recordou das paternas narrativas, e lembrando-se do padre Antônio Sepp, se saiu assim:
- Também sou poliglota!
- Que que é isso, tchê?
Contou então dominar três idiomas, e estava, inclusive, escrevendo sua história para participar de um concurso de contos com temática sobre a importância da leitura, da comunicação. 
Na despedida, o Feliciano, olhos tristes e marejados, acompanhou os passos do amigo. Coração apertado, olhando para o alto, manifestou-se como que falando com Deus:
- O maior analfabeto é aquele que não pratica a leitura!
* 1972: Transferência do 2º Regimento de Cavalaria Mecanizad
Categoria: Adulto 

Site: Otávio Reichert 
FaceOtavio Geraldo Reichert   
Fone wats: (55) 99118-2080  otavioreichert@gmail.com

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