Há muitos e muitos sóis e luas passadas, antes, bem antes do homem branco chegar aqui no chão brasileiro, quando não haviam fronteiras e a terra deste recanto sulino era uma terra sem males serpenteada por rios límpidos repletos de peixes, mata ciliar e mato alto verdejante, flores graciosas, frutos saborosos, sombra à vontade, o bucólico expansivo dos campos, tacurus, pássaros multicores e outros animais silvestres de diversas espécies, ar puro e os nativos que aqui viviam com seus ritos, suas crenças em plena liberdade e harmonia com o seu habitat.
Ela era uma nativa e chamada-se Açucena. Tinha um porte mediano, corpo escultural, cabelos negros, olhos meio esverdeados, pele sedosa e tez um pouco mais clara que os demais da sua tribo e gostava de cantar.
Ele, jovem nativo, forte, intrépido guerreiro, chamava-se Guaracy.
Num dia primaveril Açucena e Guaracy tiveram o primeiro encontro de amor seguindo todo o ritual da aldeia.
Viveram felizes por uns tempos, tiveram um filho chamado Tupaq. Sempre visitavam um lugar à beira da estrada e cada vez que iam lá Guaracy com uma vara riscava o chão como a demarcar aquele local onde acontecera o primeiro beijo e eis que Guaracy dali uns dias foi para a guerra defender o seu povo e, de lá, nunca mais voltou.
Açucena amargando a saudade, na dura espera, voltava sempre nesse lugar e chorava alimentando a esperança de que seu amado voltasse e, de tanto chorar, a cada lágrima vertida de seus olhos regava a terra na sua permeabilidade e aquele risco no chão, com a ação das suas lágrimas foi crescendo, crescendo, crescendo e, então, formou-se uma Ib-soroc, uma voçoroca, uma barroca ou seja, um traço na geografia que ainda hoje resiste ao tempo num campo situado entre o rio Piratini e rio Icamaquã na Região das Missões onde hoje assenta-se a localidade de Igrejinha, interior de Bossoroca, a Buena Terra Missioneira.
Açucena viveu o resto da sua vida à espera do seu amado Guaracy que a guerra o quedou para sempre.
Os silvícolas descendentes do seu povo continuaram por aqui. Nasciam, cresciam, amavam, guerreavam. Viviam, sobreviviam e morriam na sucessão contínua da vida e, assim, tornou-se vasta a raça Guaranítica até que um dia nasceu um outro nativo, filho dessa sucessão, valente guerreiro, audaz e que tinha um lunar na testa. Seu nome: Sepé Tiaraju. Apaixonado pela mãe terra e pela sua gente tornou-se um autêntico representante do seu povo e morreu defendendo sua raça e sua gente. Mas a cobiça, cruel e insana vinda do homem branco, veio com jeito avassalador semeando horror nesta aventura humana e os Guaranys foram massacrados, expulsos, aniquilados, e o sangue manchou de rubro o Pampa, e os templos ruíram...
O tempo passou, ficaram poucos nativos, veio o gaúcho e depois o imigrante mesclando as raças. Ainda hoje, nos versos e nas canções, aqui em Bossoroca, das fendas do chão, das voçorocas, deste ventre aberto na terra brotam, vertem e emanam, pela inspiração dos versos dos poetas e pelas gargantas dos cantores, declamadores e payadores, lamentos, preces, cantos, payadas, poesias, poemas e guitarreadas, florescendo ganas, anseios, verdades incontestáveis e sonhos alimentando a alma da gente na essência terrunha que, sem igual, nos ensina e nos dá o vigor para amarmos terra e gente como fez esse casal ancestral. Assim, fruto daquele romance, surgiu a fenda histórica no chão, a Iby-Soroc, Bossoroca que é um marco na história e na geografia desta pátria missioneira, rio-grandense-do-sul e brasileira.
A Lenda da Bossoroca (IB-SOROC)
Resgatada por: João Antunes e João Ribeiro.
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